domingo, 3 de janeiro de 2010

O Pensamento de Santo Agostinho

Criado por Jorge Sarmento

PENSAMENTO CRISTÃO NA IDADE MÉDIA: DOMINADO PELA PATRISTICA E ESCOLÁSTICA.

PATRISTICA: FORMAOU-SE NOS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO E PERDUROU ATÉ CARLOS MAGNO (800)

SANTO AGOSTINHO (354-430) PRINCIPAL NOME.

AUTOR DA DOUTRINA CONSIDERADA O ELO DE LIGAÇÃO ENTRE A FILOSOFIA GREGA E A MEDIEVAL.

REFLEXÕES SOBRE O DIREITO E O ESTADO: CONTIDAS NA OBRA “DE CIVITATE DEI”.

DE CIVITATE DEI – APRESENTA SUA TEORIA DA HISTÓRIA DO GÊNERO HUMANO, SOBRE O PROBLEMA DO BEM E DO MAL, SOBRE O DESTINO ULTRATERRENO DO HOMEM, SOBRE A JUSTIÇA E SOBRE O ESTADO.

DE CIVITATE DEI – APRESENTA DE FORMA COMPLETA A DIFERENÇA ENTRE O CONCEITO HELÊNICO E O CONCEITO CRISTÃO DE ESTADO.

PENSAMENTO GREGO:
EXALTAÇÃO DO ESTADO COMO FIM SUPREMO DO HOMEM.

SANTO AGOSTINHO: EXALTA SOBRETUDO A IGREJA E A COMUNHÃO DA ALMAS EM DEUS.
SOCIEDADE HUMANA ANTES DO PECADO ORIGINAL: FASE DE ESPLENDOR – ACATAMENTO DO DIREITO NATURAL. TODOS OS HOMENS ERAM IGUAIS, PUROS, IMORTAIS E VIVIAM COMO IRMÃOS = CIDADE DE DEUS.
QUEDA DO HOMEM: SURGIMENTO DA CIDADE TERRENA, CARACTERIZADA PELA MISÉRIA, MORTE E PAIXÃO.
NOVA CONDIÇÃO HUMANA: PROCESSO DE ADAPTAÇÃO – CRIAÇÃO DO ESTADO, DO DIREITO E SUAS INSTITUIÇÕES.

PAPEL DO ESTADO: PROMOVER A PAZ TEMPORAL ENTRE OS HOMENS.
ESTADO: DERIVA DA VONTADE DIVINA E DA NATUREZA E DEVE ESTAR SUBORDINADO À CIDADE CELESTE.

CIDADE CELESTE: CONFUNDE-SE COM A IGREJA NA BUSCA DA PAZ ETERNA.
MAL: AUSÊNCIA DE DEUS E SURGE DA DESOBEDIÊNCIA DO HOMEM.
DEUS: SOMENTE CRIOU O BEM.
DISTINÇÃO DE TRÊS (3) ORDENS NO ÂMBITO DO DIREITO:
1) LEI ETERNA (LEX AETERNA): DE CARÁTER IMUTÁVEL. É A PRÓPRIA RAZÃO E VONTADE DE DEUS.
2) LEI NATURAL (LEX NATURAE) : É A TRANSPOSIÇÃO DA LEI ETERNA NA MENTE HUMANA, EXIGINDO A TRANQUILIDADE, A ORDEM E A SEGURANÇA.
3) LEI TEMPORAL (LEX TEMPORALIS): É O DIREITO POSITIVO, A LEI FEITA PELOS HOMENS, ESSENCIALMENTE MUTÁVEL, SOMENTE OBRIGANDO À OBEDIÊNCIA QUANDO DERIVA DA LEI ETERNA. A LEI TEMPORAL SERVE À PAZ.

ORDEM DO MUNDO: EXISTE DE FORMA ESCALONADA.
LEIS: EXISTEM DE FORMA HIERARQUIZADA: ETERNA, NATURAL E TEMPORAL.
PALAVRA “LEI”: DERIVA DE LIÇÃO, OU DE ELEIÇÃO, PARA QUE SE SAIBA ESCOLHER ENTRE MUITAS COISAS.
ESTADO: QUANDO CONVERTIDO AO CRISTIANISMO E SUBORDINADO À IGREJA TORNA-SE INSTRUMENTO EFICAZ DA CIVITAS DEI QUE TEM POR FIM A CONSERVAÇÃO DA PAZ
IGREJA: ESTÁ SITUADA ACIMA DO ESTADO (CIVITAS), E É UMA COMUNIDADE ESPIRITUAL QUE POSSIBILITA O TRÂNSITO PARA A CIDADE DE DEUS.
ESTADO: MEIO NECESSÁRIO PARA A IGREJA ATINGIR SEUS FINS, ISTO É, A SALVAÇÃO DA ALMA IMORTAL DA CRIATURA HUMANA, DA CIDADE IMPURA.
PODER DO MONARCA: DE ORIGEM DIVINA.
AGOSTINISMO POLÍTICO: CONFLITO ENTRE O PODER TEMPORAL (ESTADO) E O PODER ESPIRITUAL (IGREJA), EM TODA A IDADE MÉDIA.
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SANTO AGOSTINHO E A PATRÍSTICA


Chama-se patrística à especulação dos Padres da Igreja nos primeiros séculos do cristianismo. Patrística é uma palavra de origem latina, que vem de patear, patris, pai, padre, e se constitui no estudo da vida e das obras dos padres da Igreja e dividem-se em três classes: os Doutores da Igreja, os Padres e os escritores eclesiásticos. Assim, na teologia católica, a patrística é o nome que se dá à Filosofia dos Padres da Igreja ou Santos Padres que viveram especialmente entre os séculos II e VII, isto é, do início do cristianismo até Carlos Magno (800). São eles que vão levar a filosofia grega e fundar, a teologia da Igreja cristã.

Esses padres representam o conflito e a síntese entre o mundo antigo e o cristianismo. A Patrística subdivide-se em dois períodos, separados pelo Concílio de Nicéia, convocado pelo imperador do Oriente, Constantino, e realizado em 325.

Entre os padres da Igreja encontram-se: Santo Ambrósio, São Cipriano, São Gregório Nazianzeno, São Basílio, Santo Atanásio, São João Crisóstomo, São Cirilo de Alexandria, Santo Agostinho.
O propósito desses padres cristãos não é intelectual nem teórico. São João e S. Paulo, apesar da extraordinária profundidade dos seus escritos, não tencionam fazer filosofia. O que não quer dizer que a filosofia não tenha de se ocupar indiscutivelmente deles. Mas, pouco a pouco de um modo crescente, os temas especulativos vão adquirindo lugar no cristianismo. Sobretudo por dois estímulos de índole polêmica: as heresias e a reação intelectual do paganismo. Os primeiros séculos da nossa era são os da constituição da dogmática cristã. Quando o cristianismo, para se defender dos ataques polêmicos e das perseguições, e também para garantir a própria unidade contra cisões e erros, teve de pôr a claro os próprios pressupostos teóricos e organizar-se, num sistema doutrinal, apresentou-se como expressão completa e definitiva da verdade que a filosofia grega tinha procurado, embora imperfeita e parcialmente encontrada. Uma vez no terreno da filosofia, o cristianismo defendeu a sua continuidade com a filosofia grega e apresentou-se como a sua última e mais completa manifestação.
Em sua elaboração teórica, os Padres da Igreja foram freqüentemente ajudados e inspirados, como era inevitável, pelas doutrinas das grandes escolas filosóficas pagãs; e, especialmente aos estóicos, foram eles beber muitas das suas inspirações.

A Patrística surge portanto, como o período desta elaboração doutrinal, e os Padres da Igreja são os escritores cristãos da Antigüidade que contribuíram para a elaboração doutrinal do cristianismo e cuja obra foi aceita e tomada como sua pela igreja. O período da Patrística pode ser dividido em três partes. A primeira, que vai até cerca do ano 200, é dedicada à defesa do cristianismo contra os seus adversários pagãos e gnósticos. A segunda, que vai de 200 até cerca de 450, é dedicada à formulação doutrinal das crenças. A última, que vai de 450 até ao final da Patrística, é marcada pela reelaboração e sistematização das doutrinas já formuladas.

A obra essencial da Patrística foi compreender e conceituar a filosofia grega, adaptada aos dogmas do cristianismo. Dogmas não são fundamentados filosoficamente, apenas formalmente conceituados. Dogma (dogma) é uma palavra grega, que significa opinião, decisão (da assembléia popular ou rei), resolução. Na religião, os dogmas são teses abstratas, desvinculadas da vida, que se adotam como verdades inquestionáveis e são consideradas bases suficientes para refutar e condenar as teses que lhe são opostas.

O dogmatismo é próprio de todas as religiões e caracteriza-se pela fé cega nas autoridades, em defesa de teses não demonstradas. Em filosofia o dogmatismo aparece como expressão do pensamento não dialético (metafísico).
Para a Patrística, a vontade de Deus se sobrepõe a tudo. O Estado é manifestação do direito natural e da vontade de Deus, onde existe outra comunidade, a Igreja, renovando o governo e o Estado, através da conduta ética de cada cidadão. A filosofia serve de fundamento à teologia. A teologia vai à frente, em atitude polêmica, procurando explicar os dogmas, as verdades, mas os argumentos são buscados na filosofia, a lei é a vontade de Deus.

Continuando a tradição dos juristas romanos, para os Padres da Igreja, a lei natural está escrita no “coração” dos homens como uma espécie de força inata ou de instinto. O direito natural cristão, como criação de Deus, existe eternamente. Distinguindo entre a natureza criadora e a natureza criada, o homem, como criatura feita por Deus, é um sujeito livre (livre-arbítrio) e moral (responsável), cuja lei é o amor (caritas). Como conseqüência, o pecado é a violação da lei do amor, que priva o homem de Deus, o sumo Bem. A felicidade está na vida eterna. A Igreja tem, portanto, maior autonomia e é superior ao Estado. A Patrística elevou o conceito romano de boa-fé (bona fides).

O Cristianismo em seus começos, nada tem de especulativo. Na verdade, não há verdadeiramente uma Filosofia cristã. Estuda-se o cristianismo não em si mesmo, mas em relação com a filosofia grega. A verdade é que o cristianismo, em sua totalidade, flui nos moldes do ensino filosófico grego, e particularmente daquele que, até o século II, foi o único organizado: o ensino estóico.
Para se defender dos ataques polêmicos (com a religião pagã), das perseguições e para garantir a unidade da Igreja, o cristianismo defendeu a sua continuidade com a filosofia grega e apresentou-se como sua última e mais completa manifestação. Justificou essa continuidade com a unidade da razão (logos), que Deus criou idêntica para todos os homens e à qual a revelação cristã deu o último e mais seguro fundamento. Com isso afirmou implicitamente a unidade da filosofia e da religião.

Nos séculos seguintes, a elaboração doutrinária continuou, sobretudo para constituir a doutrina eclesiástica num organismo único e coerente, fundado numa sólida base lógica. A continuidade que se tinha estabelecido entre a filosofia pagã e o cristianismo consolida-se e aprofunda-se. O cristianismo apresenta-se como a autêntica filosofia que absorve e leva à verdade o saber antigo, fonte para a sua própria justificação e sistematização definitiva. Relacionando a Biblia, a Filosofia Grega e o Direito Romano, vão difundir conceitos do Bem e do Mal.

É no século II que começa a verdadeira atividade filosófica, na época dos Antoninos, com os Padres Apologetas (de apologia, defesa, elogio), que escreviam em defesa do cristianismo contra os ataques e perseguições que lhe eram dirigidos. Nesse período os cristãos são hostilizados pelos hebreus como estrangeiros, pela plebe pagã, da qual são alvo e perseguidos sistematicamente pelo Estado.

O poder da Igreja desenvolveu-se lentamente nos três primeiros séculos e rapidamente depois da conversão do imperador Constantino em 311. Os bispos eram eleitos popularmente e aos poucos adquiriram considerável poder sobre os cristãos. Quando o Estado se tornou cristão, foram concedidas aos bispos as funções judiciais e administrativas.

Na Segunda metade do século IV, em 440, foi criado o papado, com forma monárquica eletiva de poder, quando o imperador colocou a força pública a serviço do bispo de Roma. O papa (bispo) de Roma se tornou o chefe de toda a Igreja, ficando, desde então, à frente do Estado pontifical, reinando no ápice dessa sociedade poderosamente hierarquizada com status de soberano independente e passando a ser considerado o representante de Jesus na terra e Roma (que como potência política já havia ruído) passa ser a capital da Igreja.

A Igreja cristã torna-se herdeira do Império Romano, com suas imagens e instituições e será chamada de Igreja Católica romana. Também no século IV se constitui o Direito Canônico. Impõe-se o celibato aos padres e só admite o regime dotal para o casamento, tornando a mulher incapaz e seu testemunho nos tribunais sem valor.

Em 529 a Academia de Platão, em Atenas foi fechada pela Igreja e nesse mesmo ano foi fundada a Ordem dos Beneditinos, a primeira grande ordem religiosa. Daí em diante os mosteiros passaram a deter o monopólio da reflexão e do saber durante a Idade Média. As próprias universidades vão surgir no seio desse monopólio, a partir do século XI. Os intelectuais pertencem às ordens religiosas e consequentemente, as principais questões filosóficas são referentes à fé e a razão, esta última subordinada à fé.
Dessa forma, da religião cristã nasceu a filosofia cristã, com o objetivo de conduzir o homem à compreensão da verdade revelada por Jesus Cristo e cujo instrumento era a filosofia grega. Os cristãos tinham o conceito de Deus que deriva, necessariamente da consideração da natureza e nessa demonstração são usados conceitos platônicos. As doutrinas helênicas do último período, exprimiam o significado da revelação cristã e com essa finalidade foram utilizadas.

As duas grandes sínteses do cristianismo interpretado através de conceitos tirados da filosofia grega, relacionando esta última ao próprio cristianismo são: a Patrística e a Escolástica.

Os Padres Apologetas (de apologia, elogio) serão os iniciadores da Patrística, particularmente relacionados ao seu período de formação. Dentre os Padres Apologetas destacam-se:

Flávio Justino: (aprox. 100-165) apologeta oriental, nascido em Neápolis, era filho de pais gregos, estudou filosofia grega, abandonando-a para seguir o cristiansmo. Vindo para Roma, abriu a primeira escola cristã, sendo perseguido e condenado à morte. É considerado o verdadeiro fundador da doutrina Patrística do direito natural teológico, no qual a lei natural seria uma manifestação divina, segundo a fórmula estóica da existência do logos universal, de cuja essência participam em maior ou menor grau todos os homens.

Santo Irineu : (aprox. 125-203) enviado para a Gália, tornou-se bispo de Lyon. Santo Irineu é considerado o pai da doutrina católica e se destacou por seu combate aos gnósticos.

Como Sêneca, afirmava a existência de um primitivo estado de inocência na sociedade humana, antes do pecado original haver despertado na natureza do homem toda a sorte de paixões e, em conseqüência a luta contra seus semelhantes. Deus criara então o Estado e as demais instituições como forma de coação, para obrigar o homem a respeitar as normas sociais. Assim, existiria um direito natural primitivo, anterior à queda, substituído pôr um direito natural secundário, posterior ao pecado original e destinado a corrigir as conseqüências dele advindas.
Tito Flávio CLEMENTE (Santo), apologeta grego, provavelmente de Atenas, chamado Clemente de Alexandria. Convertido ao cristianismo, São Clemente ensinou na escola catequista de Alexandria que, apesar de já existir há muito tempo, havia sido transformada pelo seu antecessor (Panteno), em academia cristã, na qual toda a sabedoria grega era utilizada para fins apologéticos do cristianismo. São Clemente deu o máximo esplendor à escola. Identificou, à semelhança de Justino e outros apologetas, a razão universal dos estóicos (logos) com o Deus cristão. Essa razão divina, que se manifestara no Decálogo e na pessoa de Jesus Cristo, transmitia a todos os homens, que dela participam em maior ou menor grau, os princípios da moralidade natural, percebidos pela reta razão (orthos logos). Haveria, assim, uma coincidência entre a lei natural e a lei divina.

ORÍGENES (185-250): Bispo de Alexandria, também dirigiu a famosa Escola Catequista de Alexandria, como sucessor de Clemente e depois em Cesareia, onde fundou uma escola célebre por sua biblioteca. Morreu mártir (como seu pai), em Tiro, em 250, durante a perseguição de Décio.

Orígenes contrapunha à lei civil, feita pelos homens, uma lei natural identificada com a lei de Deus, isto é, com o Decálogo de Moisés. Deus é o criador do direito natural, somente ele tem validade para os cristãos, desobrigados de obedecer qualquer lei civil que se lhe oponha. Com esta ressalva, as leis humanas, variáveis segundo os diferentes povos e países, obrigam todos os cidadãos, inclusive os adeptos do cristianismo.

A síntese da filosofia grega e das escrituras hebraicas permaneceu mais ou menos acidental e fragmentária até o tempo de Orígenes.
Os doutores da Igreja:

Os chamados doutores da Igreja são quatro: Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e o papa Gregório, o Grande. Surgem no período que medeia entre a vitória da Igreja sobre o Império Romano e a invasão dos bárbaros.

Santo AMBRÓSIO: (aprox. 330-397), nascido em Tréveris, filho de um dos prefeitos romanos da Gália. Aos treze anos foi levado para Roma, onde recebeu boa educação. Mais tarde dedicou-se ao estudo das leis. Tornou-se bispo de Milão por aclamação popular. Milão era, no final do século IV, a capital do Império Ocidental.

Estadista eminente, envolvoeu-se em vários conflitos com imperadores, demonstrando que em várias matérias o Estado devia se submeter à Igreja. Santo Ambrósio condicionava a prática da justiça ao conhecimento de Deus e o amor ao próximo. Como Santo Irineu, fazia derivar o caráter coativo das leis e instituições da necessidade de coibir as paixões e violências despertadas na natureza humana após o pecado original e o desaparecimento de um primitivo estado de inocência concebido à maneira de Sêneca. Para ele, a justiça é uma virtude social, traduzida pôr amor a Deus e ao próximo. Direito Natural é viver conforme o justo, não prejudicando ninguém.
Aurélio AGOSTINHO (Santo) (354-430). Nasceu em Tagasta, África romana. Filiado à seita gnóstica dos maniqueus, passou para o ceticismo acadêmico e mais tarde para o neoplatonismo. Convertido ao cristianismo em 391, foi sagrado bispo de hipona em 395, onde viveu até a invasão dos vândalos na África, morrendo quando eles assediavam Hipona.

Em Santo Agostinho é flagrante a preocupação com o transcendente, isto não só em função de sua conversão para o cristianismo, mas sobretudo em função de sua profunda formação na cultura helênica, tendo-se em vista o eco do platonismo nos sécs. III e IV da Era Cristã. É certo que no teologismo da obra agostiniana vive-se o mesmo estremecimento pelo qual Agostinho passou quando de sua conversão. Isto porque a influência dos dogmas cristãos está-lhe a perpassar gradativa e paulatinamente mais os escritos à medida em que ganha maturidade seu pensamento.

A conversão de Agostinho ao cristianismo, representou sua verdadeira adesão à filosofia, não no sentido de que não a praticasse anteriormente (maniqueísmo...), mas no sentido de que sua profissão de fé se tornou o sacerdócio da palavra divina por meio de sua filosofia. Isto é de interesse direto no presente estudo, uma vez que Agostinho se torna pai da igreja (patear ecclesiae) e teorizador cristão.

É certo, então, que sua teoria, que se espraia por diversos temas, estará marcada por esta ambivalência, ou seja, por um conhecimento minucioso das Sagradas Escrituras, de um lado, prova disto são as citações que recheiam seus escritos, e por um conhecimento amplo dos textos gregos clássicos e pós-clássicos, de outro lado. Foi exatamente o bom conhecimento das doutrinas cristã e pagã que permitiu a Agostinho galgar o status de patear ecclesiae, soldando com isto, a doutrina platônica especificamente ao ensinamento católico.

Nota-se em Agostinho, no plano de discussão dos problemas éticos, políticos e jus-filosóficos um resgate da metafísica platônica, tudo sob os fortes influxos da Palavra Evangélica.

A concepção agostiniana acerca do justo e do injusto floresce sobretudo nesta dimensão, ou seja, concebendo-se uma transcendência que se materializa na dicotomia existente entre o que é da Cidade de Deus (lex aeterna) e o que é da Cidade dos Homens (lex temporalem). O tema em Agostinho remete o estudo do problema de justiça fundamentalmente à discussão da relação existente entre lei humana (lex temporalem) e lei divina (lex aeterna), onde está compreendido o estudo das diferenças, influências, relações, etc., existentes entre as mesmas.


Sua obra mais conhecida é a De Civitate Dei (A Cidade de Deus), composta na época da tomada de Roma pelo rei godo Alarico, A expressão “Cidade de Deus” tem origem nos ensinamentos bíblicos Jesus, pois ele acreditava que a história do homem era a luta entre o “Reino de Deus” e o “Reino do Mundo”.


Existem duas cidades, a cidade terrestre e a cidade divina, diferentes quanto à origem, desenvolvimento e fim. A cidade terrestre é povoada por homens que vivem de acordo com o mundo. A cidade divina é composta por almas libertas do pecado, que vivem próximas a Deus. A imagem da cidade divina é a Igreja, que reinará soberana sobre seus inimigos. O “Reino de Deus” é mais evidente na Igreja e o “Reino do Mundo” nos Estados políticos que estavam se formando após a decadência de Roma. “Não há salvação fora da Igreja”. O ideal de cidade, neste mundo é o Estado em que o Príncipe coloca o poder à serviço de Deus.


Para Santo Agostinho a justiça humana é aquela que se realiza inter homines, ou seja, que se realiza como decisão humana em sociedade. A justiça humana tem como fonte basilar a lei humana, aquela responsável por comandar o comportamento humano. Neste sentido, o homem se relaciona com outros homens e com o que o cerca; é no controle destas relações que se lança a lei humana. Não é portanto, sua tarefa, comandar o que preexiste ao comportamento social. Para que se possa pensar acerca do que preexiste, deve-se recorrer a idéia de Deus, que, como origem de tudo, como princípio unitário de todas as coisas, só pode ser o legislador maior do Universo. A tarefa divina no controle do todo é, aos olhos humanos, irrealizável. É exatamente a ilimitação dos poderes de Deus que permite tudo conhecer, tudo saber, tudo coordenar. Pelo contrário, é a limitação humana que faz do homem um ser restrito ao que lhe está ao alcance mais imediato. A limitação humana torna o campo de abrangência das leis no tempo e no espaço igualmente restrito.


A justiça divina é aquela que a tudo governa, que a tudo preside dos altiplanos celestes; de sua existência brota a própria ordenação das coisas em todas as partes, ou seja, em todo o universo. A justiça divina se baseia na lei divina, que é aquela que é exercida sem condições temporais para sua execução, não sujeita, portanto, ao relativismo sócio-cultural que marca as diferenças legislativas entre povos, civilizações e culturas diversas.

A lei eterna inspira a lei humana, da mesma forma que a natureza divina inspira a natureza humana. Sem dúvida alguma, a natureza humana pode ser dita uma natureza divina, isto pois todo o criado é fruto do Criador. Neste sentido, a lei humana também é divina, ou seja, também participa da divindade. Em outras palavras, a fonte última de toda lei humana seria a própria lei divina. Porém, sua imperfeição, seus desvios, sua incorreção derivam direta e francamente das imperfeições humanas.

Nesta ordem de idéias, onde homens, instituições, governos, julgamentos, ordenações, organizações, comportamentos são corruptos, também leis são corruptas. Este é o estado de coisas humano; este é o estatuto da lei humana. A justiça humana, portanto, nesta orientação, é viciada ab origine. A justiça, dentro desta dimensão, vem compreendida como algo profundamente marcado pelos próprios defeitos humanos.

Também outras são as diferenças que marcam nuances entre lei humana e lei eterna. Os comandos da lei eterna e da lei humana são diversos, ou seja, o que uma comanda, por vezes, à outra é indiferente. O que uma recrimina, para a outra, pôr vezes, não requer atenção especial.

De fato, quando a lei eterna comanda de a alma governar-se por si está a comandar nada mais que a sua aproximação de Deus. Este processo de ascensão da alma não se faz, no entanto, sem um desprendimento gradativo de todas as atrações mundanas e temporais, perecíveis e fugazes. “A lei eterna ordena então de desviar seu amor das coisas temporais e de torná-lo, assim purificado, em direção às coisas eternas”. Neste sentido, o que está prescrito por esta lei é o que deve ser absoluto. Tudo deve estar conforme ao conteúdo desta lei, porque é ela o mandamento maior da vida, e é em seu rastro que se pode alcançar a perfeição. Neste sentido, a busca do eterno significa trilhar caminhos guiados pela lei eterna; governar-se é deixar-se governar pela lei eterna.

Diferentemente, a lei temporal não se preocupa, ao menos diretamente, com o bem-estar da alma em si e por si. Para ela é indiferente o caminho trilhado pelo homem, desde que não transgrida seus ditames. Prova disto é que a lei temporal não pune o amor dos bens materiais, mas sim, o que por ela é recriminado é o roubo injusto dos mesmos. Desta forma, a lei humana ou temporal, ao se preocupar somente com o roubo ou não dos bens materiais, simplesmente é indiferente à paixão pelos mesmos, o que significa que se basta em salvaguardar o governo civil, por meio da ordenação da conduta social. Não se trata, portanto, de a lei humana preocupar-se com o governo da alma nos trilhos da virtude, mas sim do governo da alma fora da ilegalidade e da transgressão. Enfim, o que deve se reter é o fato de que a lei humana recrimina crimes o suficiente para promover a paz social. Ou seja, somente o que é absolutamente indispensável para salvaguardar a paz social interessa diretamente como conteúdo de uma alma humana. Paixões que a lei humana exclui de sua regulamentação, de sua disciplina, de sua tutela, desde que não se caracterizem em atos ilegais, a lei divina condena (inveja, ódio, concupiscência, desejar a mulher do outro...). O que é justo, ou ao menos não é considerado injusto de acordo com a lei humana (ilegal), não pode necessariamente ser considerado justo de acordo com a lei divina; lei humana e lei divina, pôr vezes, possuem conteúdos semelhantes, até idênticos, mas nem sempre isto aparece como uma necessidade. Em De libero arbitrio, I.V, 13, é exatamente esta discussão que Agostinho introduz, no sentido de dizer que a lei divina pune e recrimina condutas não compreendidas entre os delitos segundo a lei humana, sendo portanto, mais severa por penetrar na própria alma humana.
Ainda que imperfeita, e sujeita a todo estado de coisas a que está submetida a mundanidade, a lei que pode ser chamada temporal, ou seja, a lei escrita, constitui recurso auxiliar na organização social. Sua presença no sentido da regulamentação da conduta humana é indispensável. De fato, trata-se de ajuda para os homens no governo das coisas humanas, e, portanto, sua transitoriedade é manifesta, estando sujeita a mudanças constantes. Essas mudanças podem vir, de um lado, a favor da própria comunidade, pois o que era lei podia não ser justo, e o que se tornou lei passou a instituir o justo, ou, de outro lado, em desfavor da comunidade, ou seja, passando-se de um estado de justiça inscrita na lei para um outro estado de injustiça inscrita na lei.
Mais que isto, Agostinho está preocupado não só com o relacionamento da lei eterna com a conduta humana, de modo a que a eterna se veja cada vez mais presente e imiscuída na realidade da leis humanas. Agostinho quer mesmo salvaguardar a noção de que o Direito só possa ser dito Direito, quando seus mandamentos coincidirem com mandamentos de justiça. Conceber o Direito dissociado da justiça é conceber um conjunto de atividades institucionais humanas que se encontram dissociadas dos anseios da justiça. Mais que isto: “Suprimida a justiça que são os grandes reinos senão vastos latrocínios ?”. (De Civitate Dei).

Invocando o conceito de república (res –publica) de Cícero, ao lado da doutrina de Varrão, Agostinho quer dizer que o que se faz com direito se faz com justiça, e o que se faz sem justiça não se pode fazer com direito; as iníquas instituições humanas por si só não podem ser chamadas de Direito. Ainda uma vez se diga, para Agostinho, o Direito não se concebe dissociado da noção de justiça. Isto reafirma a noção de que qualquer reunião de pessoas pode ser chamada de povo. A coisa pública que se forma em torno de um povo deve ser administrada não só com Direito, mas sobretudo com justiça. Assim, Direito e justiça se atrelam, ainda que em meio à transitoriedade dos interesses humanos, andando de mãos dadas.

Neste sentido, chamar um governo de destemperado é dizer que este ou aquele governo se distanciou da ordenação comum de todas as coisas. Em outras palavras, o governo deve se guiar para a condução de coisa pública, e seu distanciamento desta significa a recondução para interesses outros que não os comuns a todos, mas sim puramente pessoais, egoísticos. Todo governo deve se pautar nos preceitos da lex divina para ser categorizado à conta de governo justo; dissociar governo e divindade é fazer do poder temporal um poder vazio, destituído de sentido, ou mesmo esvaziado de finalidade superior, que não aquelas egoísticas que possam mover um, poucos ou muitos, conforme o número dos ocupantes do poder público, à condução da coisa pública. A busca da pax aeterna preenche de fins o poder secular justo.

Onde resplandece o exercício do poder puro e simples, ou seja, onde o poder se exerce com base na força e não com base na justiça, identifica-se um poder que se exerce na base da iniqüidade (iniquitas). É com esta intenção que Agostinho repele o Direito destituído de finalidade, ou seja, constituído com o único fim de usurpar a coisa pública, constituído, portanto, como mera instituição humana. Assim, onde não há verdadeira justiça, não há verdadeiro Direito, pois só se pode considerar uma aglomeração humana organizada em república, ou seja, sob uma ordem jurídica, onde há o consentimento do povo. Ou seja, num sistema como este, estará a presidir o conjunto das relações humanas a justiça, que é esta virtude que distribui a cada um o que é seu.

Nota-se que a filosofia agostiniana, ao se debruçar sobre a questão da justiça, vem sobretudo marcada pela noção romano-ciceroniana de que o governo de direito é o governo justo, onde a justiça é o dar a cada um o que é seu. Esta virtude que sabe atribuir a ca um o que é seu é uma virtude que coordena interesses e vontades, estabelecendo a ordem. Não há república sem ordem, não há ordem sem direito, não há direito sem justiça.

Quebrar esta ordem estabelecida representa mesmo quebrar a ordem de Deus, atribuindo algo a alguém que disto não é merecedor; na distribuição do que é devido a cada um deve haver equilíbrio e sobriedade, ou ainda, sabedoria prática. Atribuir algo a alguém a quem não deva ser dado, deixando-se, portanto, de se atribuir algo que a alguém é devido, nesta medida, é ser injusto. A justiça, portanto, tem a ver com ordem, da razão sobre as paixões, das virtudes sobre os vícios, de Deus sobre o homem.


O Livre-arbítrio

Para Agostinho, a existência da vontade livre (ou do liberum arbitrium) jamais chegou a ser um problema. Trata-se, a seu ver, de uma verdade primária e evidente, e portanto incontestável. Temos consciência de nos determinarmos a nós mesmos e de sermos responsáveis pôr nossos atos. O problema propriamente agostiniano diz respeito ao uso desta vontade livre, bem como ao seu valor e à sua bondade. Qual a razão de ser da vontade, e como conquista ela sua perfeição na liberdade ?

O poder da vontade para optar livremente entre o bem e o mal baseia-se na sua aptidão para participar da felicidade.

Embora livre, a vontade nem sempre logra fazer o bem. Em outras palavras, nem sempre está livre dos obstáculos oriundos da culpa original e do pecado pessoal. Não gozaremos de liberdade enquanto não nos desembaraçarmos destes empeçilhos.

Para Agostinho, é justamente em função do livre-arbítrio que a justiça divina é exercida, o qual pode atuar contra ou a favor do que prescreve a lei eterna. O livre-arbítrio é o que permite ao homem atuar segundo sua vontade, que pode estar a favor ou contra a lei divina. Esta importância dada ao livre-arbítrio como auto-determinação da alma por si mesma fica clara no diálogo em que Agostinho se defronta com Evodius (De libero arbitrium, I, 1), dizendo que “as más ações não seriam punidas justamente se não tivessem sido cometidas voluntariamente”, ou seja, se as punições não tombassem sobre homens capazes de decidir, de fazer, de se conduzir de acordo com o bem ou com o mal, não haveria aí justiça alguma.

A vontade governa o homem, e pode fazê-lo contra ou a favor do próprio homem. Deve-se, portanto, orientar no sentido da governabilidade da alma pela alma, onde a razão deve ser o princípio motor do comportamento, evitando-se que a alma sucumba sob os instintos ou impulsos dos quais não está isenta.

Um comentário:

renatomello disse...

Parabéns pelo seu texto. Lúcido, coerente e conciso. Estava procurando apenas uma definição para lex aeterna, mas acabei lendo todo o conteúdo da postagem na qual você nos presenteou com uma verdadeira aula de história do direito, ou o Direito na História. E, realmente, não há como negar a influência que o Cristianismo, aplicado pela Igreja Católica exerceu e exerce no comportamento Ocidental e que acaba por se espraiar por todo o planeta.
Mais uma vez, meus parabéns!!!!