sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Texto: Da democracia

Aquele que faz a lei sabe melhor que ninguém como ela se deve executar e interpretar, logo, parece que a melhor constituição seria a que juntasse o poder executivo ao legislativo; mas é isso mesmo que a certos respeitos torna insuficiente esse governo, porque as coisas que deviam ser distintas não o são, e que, sendo o príncipe e o soberano a mesma pessoa, não formam, por assim dizer senão um governo sem governo.
Não é bom que execute as leis quem as faz, nem que o corpo do povo desvie sua atenção dos objetivos gerais para a pôr em objetos particulares. A coisa mais perigosa que há é a influência dos interesses privados nos negócios públicos, e é menor mal o abuso das leis pelo governo do que a corrupção do legislador, resultado infalível de alvos particulares. Alterada então a substância do Estado, toda a reforma vem a ser impossível. Um povo que nunca abusasse do governo também não abusaria da independência; o povo que sempre governasse bem, não precisaria ser governado.
Rigorosamente nunca existiu verdadeira democracia, e nunca existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e seja o pequeno governado.
Não se pode imaginar que o povo reúna-se continuamente para cuidar dos negócios públicos, e é fácil ver que não poderia estabelecer comissões para isso sem mudar a forma de administração.
Na verdade, julgo assentar em princípio que quando as funções do governo estão divididas entre muitos tribunais, tarde ou cedo adquirem maior autoridade os menos numerosos, quando mais não fosse pela facilidade de expedir os negócios, que naturalmente os conduz a essa primazia.
Além disso, que árdua reunião de coisas supõe tal governo! Primeiramente, bem pequeno Estado, em que se ajunte facilmente o povo e onde seja fácil a cada cidadão conhecer todos os mais; em segundo lugar, grande simplicidade nos costumes, que evite a multidão de negócios e discussões difíceis; muita igualdade ainda nas classes e nas fortunas, sem o que não poderia subsistir longo tempo a igualdade nos direitos e na autoridade; ao fim, pouco ou nenhum luxo; porque o luxo é o efeito das riquezas, ou as faz precisas e corrompe ao mesmo tempo, este com a possessão, aquele pela cobiça; o luxo vende a Pátria à frouxidão e à vaidade, rouba ao Estado todos os cidadãos para os submeter uns aos outros, e todos à opinião. Eis por que um célebre autor dá por princípio das Repúblicas a Virtude, porque tais condições não podem subsistir sem ela; mas por não haver feito as distinções necessárias, umas vezes faltou a tão belo engenho a justeza, outras, a clareza; não viu que sendo a autoridade soberana a mesma em toda a parte, o mesmo princípio deve ter lugar em todo Estado bem constituído e, mais ou menos, sem dúvida, segundo a forma do governo.
Acrescentemos que não há governo tão sujeito às guerras civis e agitações intestinais como o democrático, ou popular, porque não há outro que atire tão forte e incessantemente a mudar de forma, nem que requeira mais vigilância e coragem para se manter na sua.é sobretudo nessa constituição que se deve o cidadão armar de força e constância, e dizer a cada dia, no íntimo d’alma, o que dizia um virtuoso palatino na dieta de Polônia: Malo periculosam libertatem quam quietum servitium. Se houvesse um povo de deuses, seria governado democraticamente, mas aos homens não convém tão perfeito governo.
(Jean-Jacques Rousseau – Do Contrato Social, Livro III, cap. IV)

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